terça-feira, 28 de julho de 2009
O CÃO SARNENTO DO SENADO
INEVITÁVEL: todos falam de Sarney. O presidente do Senado é para mim, ainda hoje, o signo do desencanto. Afora a euforia inicial porque morto Tancredo não teríamos aula no colégio, o distante 1985 reservava também à minha percepção infantil uma presença indesejável, personagem errado no cenário errado do palco errado do teatro errado. Com Sarney no Palácio do Planalto, fiz minha primeira viagem a Brasília. Horas e horas de ônibus depois, conheci a face de concreto da bela cidade de vento desenhada por Niemeyer. Um recepcionista - ou figura semelhante - na porta do Senado pediu que eu escrevesse meu nome no livro de visitas da Casa. Até hoje recordo da solenidade do traço cambaleante da minha letra infantil percorrendo a linha do grande livro. Na porta do Senado, aos meus poucos anos, me senti cidadão.
Toda vez que volto a Brasília - como nessa semana - lembro-me daquela cidade do meu imaginário. Nestes dias tão tempestuosos, o Distrito Federal me parece mais concreto que vento e a democracia, uma ideia muito vaga da qual nem jornais nem jornalistas conseguiram compreender plenamente, ainda, e muito menos o povo.
Sarney é o bode na sala, desde sempre. Pois vejam: na presidência, não era legítimo porque Tancredo sequer tinha assumido. No Maranhão, é do Amapá. No Amapá, do Maranhão. Eleito para a Academia Brasileira de Letras, só escreveu livros medíocres e pouco conhecidos. Além de tudo, tem o péssimo defeito de ser do PMDB, partido que se preza a identidades camaleônicas. Sarney nasceu para ser chutado pela imprensa. Em 1930, o mesmo deus que mandou Drummond ser o anjo que foi disse a Sarney que ele tinha vocação para cachorro morto.
Rottweiler vivo, que é bom, ninguém tem coragem nem de afagar. Sarney, portanto, é o alvo preferencial da mídia, da oposição, até de parte do governo, do jornalismo e do povo porque não tem forças para reagir. E a cada novo escândalo, ele mais morto ainda fica. Eu tenho dó de Sarney. Até mesmo o Lula, que o defende por motivos óbvios e evidentes, esboça um leve constrangimento no grão de voz. Sarney é aquele tio que nem respeitamos, mas com quem somos obrigados a conviver no almoço de Páscoa.
Ontem, uma emissora de rádio paulista pediu que eu entrasse no ar, ao vivo, e repercutisse o papel da imprensa na cobertura dos acontecimentos políticos recentes. Fico um pouco constrangido, porque não me presto ao papel de dizer o que os outros esperam ouvir. Entre defender a imprensa ou defender os personagens do noticiário, fico, sempre, com os segundos. O jornalismo, já chamado de "4o poder", na verdade não passa de um "velho pançudo assoprando um canudo". A metáfora é nova, mas a imagem, não. Trata-se do verso de um lundu cantado por Dona Mariquinha Docas e registrado, em 1938, pela Missão Folclórica de Mário de Andrade, em Souza, na Paraíba. Aprecio muito as imagens da cultura popular brasileira: são poderosas ferramentas de interpretação da realidade e sofisticadas máquinas de pensamento. Dez minutos de conversa sertaneja valem mais que mil tratados de metafísica e dois mil de filosofia alemã. Diz a letra da música: "Uma velha, bem velha, bem velhinha, ia atrás rezando a ladainha / Um velho, bem velho, bem pançudo, ia na frente assoprando um canudo". Hoje, o gordo é o jornalismo; a velha com a ladainha, o público.
O mais recente dos escândalos - em um país de escândalos no atacado e no varejo - confirma a metáfora. A imprensa vai à frente, assoprando o canudo e publicando, uma a uma, as denúncias contra José Sarney. Atrás vai o povo, rezando a ladainha e pedindo a renúncia do homem: da conversa no balcão da padaria (o Twitter do mundo analógico) ao Twitter (a padaria do mundo digital). Quando todo mundo fala, desse jeito, a mesma coisa, você não fica meio desconfiado? Eu fico.
Atos secretos, nomeação de parentes, corredores subterrâneos, alcovas e superdiretores. Não é possível que nossos coleguinhas de Brasília não soubessem o que se passava ali, no Senado. Por que agora publicam a denúncia e personificam a crise em torno de José Sarney? Simples: porque Sarney, coitado dele, é apenas um cão sarnento. E a imprensa morre de medo de cão bravo.
* Rodrigo Manzano é Diretor Editorial da IMPRENSA e professor de Jornalismo na graduação e pós-graduação do UniFIAMFAAM, em São Paulo. veja mais
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Um comentário:
Eu diria que Sarney não é um "cão sarnento", e sim um "osso", "osso duro de roer". Mais, é obvil, não será fácil roer esse osso. Mesmo porque o "cachorro grande" protege-o, prostando-se ao seu lado. Nem o roe e nem deixa ninguem o roer.
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