segunda-feira, 15 de março de 2010

VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA MENORES



O perigo vem de perto
Maioria das violências sexuais cometidas contra menores de idade acontece dentro de casa; saiba como e onde denunciar


DIOGO BERCITO
DA REPORTAGEM LOCAL
Folha de São Paulo

De manhã, com porta fechada e luz apagada, Carlos dava início a um ritual que repetiu por dez anos. Estuprava Joana, hoje com 15 anos, tomava banho e então estuprava Marta, 20. É pai das duas.
Essa história violenta, que se prolongou porque as filhas eram ameaçadas de morte, é parecida com a vivida por Preciosa no filme que venceu dois Oscar.
Ao contrário de "Preciosa", porém, o estupro de Marta e Joana é real. Está registrado em um dos processos criminais a que a Folha teve acesso e terminou com Carlos condenado a 54 anos de cadeia -e Joana e Marta traumatizadas pelo ato.
É dentro de casa, e não na rua, que é cometida a maior parte dos abusos sexuais contra menores de idade. E o agressor, longe de ser desconhecido, costuma fazer parte da família ou ser próximo dela.
Em 33% dos casos, o abusador é pai ou mãe da vítima, segundo levantamentos da ONG Centro de Referência da Criança e do Adolescente (ligada à Ordem dos Advogados do Brasil). Em 14%, é o padrasto.
Nessas situações, o parentesco muitas vezes é usado como justificativa pelo criminoso.
"Os pais se sentem no direito de abusar, usam o argumento "antes eu do que outra pessoa'", explica Márcia Salgado, dirigente da Delegacia da Mulher.
"Os jovens estão vulneráveis em relação às pessoas que deveriam protegê-los", diz Carmen Lutti, presidente da ONG Movimento em Defesa da Criança e do Adolescente -e são obrigados a viver divididos entre os sentimentos de medo e de afeto em relação aos pais.
Em casos de abuso como os vividos por Joana e Marta, em que o crime demora a vir à tona, o estupro passa até mesmo a fazer parte da rotina da casa.
Para evitar engravidar as filhas, por exemplo, Carlos controlava os ciclos menstruais das duas com remédios. Apesar do cuidado, o abuso foi descoberto pela mãe de ambas justamente quando Marta abortou um filho do próprio pai. Foi quando a denúncia foi feita à polícia.

Receio
A longa duração de situações como essa se dá por uma série de fatores que, juntos, calam a vítima. Além de serem ameaçados de morte, esses jovens dependem do salário dos pais e tentam preservar o amor da mãe pelo marido.
Por sua vez, quando se dá conta do abuso, a mãe enfrenta dilemas semelhantes -e pode preferir fazer vista grossa para manter o parceiro e o sustento.
Nos depoimentos de Suzana, 14, abusada pelo pai, o dilema aparece na oposição entre indignação e medo. Em determinado momento, ela diz à psicóloga querer arrancar a própria pele, de nojo. Depois, demonstra receio de tirar dos irmãos o pai que eles amam.
Pesa também nos jovens a sensação de terem sido de alguma maneira responsáveis pelo abuso -principalmente nos casos em que, depois de algum tempo, a vítima deixou de oferecer resistência.
"O que esses jovens não percebem é que não houve permissão, eles foram impulsionados para essa situação", alerta Marli de Oliveira, da ONG Liga Solidária, que tem polo de prevenção à violência doméstica.
Para a lei, a violência é presumida quando a vítima do estupro tem menos de 14 anos.

Omissão
Psicólogos, advogados e assistentes sociais ouvidos pela reportagem concordam que denunciar o abuso é necessário -por mais que possa doer ter de falar sobre o assunto.
Mas procurar o poder público nem sempre é o primeiro passo a ser tomado.
"É importante a família estar pronta, para que a intervenção não piore as coisas", aconselha Lélio Ferraz Neto, do Ministério Público de São Paulo (veja ao lado algumas entidades que prestam auxílio a vítimas).
Afinal, a denúncia, quando feita, abala as relações familiares. No caso de Cris, 15, e de Camila, 13, a acusação de que o padrasto abusou delas -desacreditada pela mãe- levou à expulsão das garotas de casa.
O apoio que as duas não encontraram na mãe, porém, veio de uma tia. Juntas, procuraram a Justiça. O acusado foi condenado a 12 anos de prisão.

Por sigilo de Justiça, os nomes de todos os envolvidos nos processos foram trocados

79
é a média de denúncias recebidas por dia em janeiro de 2010 pelo Disque 100*

*Fonte: Disque Denúncia Nacional de Abuso e Exploração Sexual contra Crianças e Adolescentes, da Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Para denunciar, disque 100

62%
das 202 mil vítimas (menores) atendidas entre maio de 2003 e janeiro de 2010 eram do sexo feminino

94%
é a porcentagem de casos em que o abusador é alguém que desfruta de convivência com a criança, como familiares, amigos ou vizinhos

Fonte: ONG Cecria (Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes)

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